Por que obra no rio São Francisco virou embate eleitoral?

maio 14, 2022 0 Por sertao16
Por Carlos Madeiro – Colunista do UOL 14/05/2022 04h00
Parte do eixo leste da transposição do rio São Francisco registrada em fevereiro de 2018,
em Monteiro (PB) – 
Imagem: Tiago França/MPF/PB
De olho nos votos dos sertanejos no Nordeste, a transposição do rio São Francisco está no centro do embate político entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e presidente Jair Bolsonaro (PL), que devem disputar a cadeira do Palácio do Planalto nas eleições de outubro e aparecem à frente nas pesquisas de intenção de votos. Ambos disputam o “título” de quem fez mais pela obra, oficialmente concluída em fevereiro deste ano. A disputa de números e fatos gerou duas narrativas distintas.
A obra demorou 14 anos para ter seu projeto básico finalizado —dez anos de atraso, considerando a promessa inicial. Após R$ 14 bilhões investidos, hoje a água chega a sertanejos de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.
A transposição do Velho Chico —como o rio é conhecido— é um sonho antigo, da época do Império, no século 19, que só saiu do papel em 2008. Trata-se de um empreendimento de engenharia complexa e que gerou muita polêmica.
A captação da água ocorre em dois pontos de captação, em Floresta e em Cabrobó, ambas no sertão pernambucano. Os canais seguem dois eixos.
O eixo leste recolhe água em Floresta, cruza o estado de Pernambuco e chega até o rio Paraíba, em Monteiro (PB). Ele foi inaugurado para fase de testes em 2018. O lançamento ocorreu com dois eventos: um oficial, do presidente Michel Temer (MDB); e outro com a presença dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff (PT).
Já o eixo norte leva água de Cabrobó até o reservatório de Jati, no Ceará —o último a ser inaugurado. A conclusão da obra foi anunciada com visita de Bolsonaro ao Nordeste.
Números da transposição:
Mais de 477 km*
R$ 14,6 bilhões investidos
390 municípios atendidos
12 milhões de pessoas beneficiadas
* Esse número não inclui os ramais do Agreste, Salgado e Apodi 
Versão petista vê obra 97% pronta
A obra da transposição do São Francisco começou quando Lula estava na presidência —o Nordeste é considerado um reduto eleitoral do ex-presidente.
O argumento dos petistas, hoje, é que 97% do projeto já estava pronto antes de Bolsonaro assumir o governo, em 2019.
Escalado para explicar os números , o ex-secretário nacional do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) no governo Dilma, Maurício Muniz, afirmou em entrevista à rádio PT que 88% dos valores da obra foram pagos nos governos petistas (Lula e Dilma Rousseff), 9% na gestão Temer e apenas 3% pela equipe de Bolsonaro.
“Ou seja, houve uma apropriação indébita em ele dizer que foi ele quem inaugurou”, afirmou.
Muniz também cita um relatório da CGU (Controladoria Geral da União) publicado em novembro de 2017. O UOL teve acesso ao documento, que aponta que 97,5% dos canais estavam prontos àquela altura —o eixo leste estava 100% concluído; para o norte, ainda faltavam 4,6% da execução física.
Governo contesta versão
A versão da equipe de Bolsonaro, porém, é bem diferente. O atual governo afirma que investiu 23,94% de tudo o que foi desembolsado na transposição desde 2008.
Na página oficial do MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) sobre o PISF (Projeto de Integração do São Francisco), há uma propaganda que afirma que o governo Bolsonaro foi o que mais investiu, em termos proporcionais, na obra. A pasta alega que “se constatou a necessidade de realizar diversos reparos e serviços complementares em estruturas danificadas”.
Fotos e falas do ex-ministro Rogério Marinho (PL) sobre a transposição seguem no ar, mesmo ele tendo deixado o governo em abril para se candidatar ao Senado pelo Rio Grande do Norte.
À coluna, o MDR citou também que o projeto cresceu nos últimos anos, com retomo ao projeto original da transposição (que previa 699 km de canais).
Em 2013, diz o ministério, “sem justificativas claras, a gestão do governo federal reduziu o projeto para 477 km de canais, excluindo três importantes ramais e deixando mais de 12 milhões de pessoas no Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte sem perspectiva de abastecimento”.
“A atual gestão retomou o projeto original da transposição, com 699 km de canais: construiu e entregou o Ramal do Agreste Pernambucano (em outubro de 2021), iniciou o Ramal do Apodi e está contratando as obras do Ramal do Salgado”, afirma.
De acordo com a pasta, a conclusão das obras físicas necessárias para as águas chegarem aos pontos finais foi em 9 de fevereiro de 2022. Porém, ainda restam serviços complementares nos dois eixos, que —segundo o MDR— não comprometem em nada a operação dos canais principais.
Quando todas as obras acessórias e complementares estiverem concluídas, 16,47 milhões de brasileiros serão atendidas —4,4 milhões a mais que informado no projeto oficial.
Sem unanimidade
Apesar de ser vendido como unanimidade no Nordeste, o projeto nunca foi bem aceito por setores sociais e ambientais.
Um dos votos contrários ao modelo da obra foi o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que se opôs à forma como a água seria levada: eles defendiam, por exemplo, que fossem feitos canais fechados, para evitar perda de água no longo trajeto dos eixos.
Segundo o presidente do comitê, Maciel Oliveira, o atual governo acabou com as reuniões periódicas que faziam o acompanhamento da obra e é difícil saber, por exemplo, o que de fato foi feito pela atual gestão.
Entretanto, ele afirma que o comitê acompanhou de perto as obras até 2018 e garante que grande parte estava concluída quando Bolsonaro assumiu.
“Até o final governo Temer, as obras já tinham realmente avançado muito, com o eixo leste entregue e, no eixo norte, faltava muito pouco”, diz. “Como não temos acesso às informações dos governos federal e estaduais, fica difícil mensurar o que foi feito a partir de 2019. Mas com certeza foi um menor percentual que foi realizado.”
Maciel relata que hoje o comitê atua como fiscal do projeto, da execução e agora da manutenção. “O que queremos é que ele não seja um elefante branco, e que atenda aos usos que foram previstos”, pontua.
Segundo ele, a obra ainda não está retirando a quantidade de água prevista. Quando isso ocorrer, diz, os impactos serão sentidos na parte do sub-médio e baixo São Francisco.
Ainda está bombeando uma carga média de 27 m³ por segundo, então os impactos não foram tão visíveis. Mas quando tiver em 127 m³/s –que é o volume de um rio– trará prejuízo. Quanto mais vai tirando, mais o rio vai cobrar.”
Interesse eleitoral em curso
Para o cientista político Adriano Oliveira, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), é compreensível que Bolsonaro tente usar a transposição a seu favor porque ele teve poucos votos na região —o semiárido do Nordeste. “O presidente tenta conquistar eleitores no Nordeste”, diz.
Oliveira avalia, entretanto, que o presidente errou ao não ter essa perspectiva de obras ainda no seu primeiro ano de mandato, quando poderia começar a investir em uma imagem positiva no Nordeste. “Ele não teve nenhuma política de desenvolvimento ou social agressiva na região. Fez isso só na pandemia com a ampliação do Auxílio Brasil e, mais recentemente, com essas liberações de recurso da transposição.”